Em um contexto de debate ou de reuniões políticas, é muito comum assistir a uma situação em que um participante ataca uma posição oposta sem levar em conta as palavras realmente ditas previamente, mas apresentando uma versão distorcida e já desacreditada da posição adversa. Este artigo tenta de descrever algumas das particularidades desses casos e concentra a sua descrição sobre os efeitos produzidos na interação. Essa descrição é feita a partir de trechos de assembleias e debates políticos da Espanha e da França.
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– Você é trotskista? inquiriu alguém.
– Eu? Que lembrança! Afirmei que sou internacionalista. Por isso me
embrulharam. Quem falou em trotskismo? Internacionalismo foi o que eu disse.
– É a mesma coisa.
– Está bem.
Esses desacordos me deixavam perplexo. Imputavam-me convicções
diferentes das minhas, e nem me restava meio de explicar-me na algaravia
papagueada ali: quanto mais tentasse desembaraçar-me, dar às coisas nomes
exatos, mais me complicaria.
— Graciliano Ramos, Memória do cárcere
Em um contexto de debate ou de reuniões políticas, é muito comum assistir a uma situação em que um participante ataca ou desqualifica uma posição oposta sem levar em conta a posição realmente apresentada previamente, mas, sim, apresentando uma versão distorcida e já desacreditada. Isso acontece no seguinte diálogo:
A: A prioridade é aumentar os benefícios sociais para os que estão desempregados há muito tempo.
B: Você̂ diz que a gente tem que criar uma política de assistencialismo generalizada. Os cidadãos não querem ser infantilizados, querem que a gente proponha um grande plano de retomada dos empregos.
Nesse fragmento de diálogo inventado e intencionalmente esquematizado, o locutor[1] B fala em assistencialismo, enquanto o locutor A falou em benefícios sociais. Os termos originais já não aparecem na réplica: foram substituídos por outros, com conotação negativa – os benefícios continuam sendo distribuídos embora possa ser encontrada outra solução. A oposição ao primeiro ponto de vista não é direta, mas mediada por sua prévia distorção – negativa. Esse fenômeno se encontra no cruzamento de uma série de preocupações discursivas e enunciativas relacionadas às formas de oposição, como o contra-discurso (Angenot, 1989; Plantin, 1996) e as refutações no diálogo (Moeschler, 1982), e também aos mecanismos de reformulação (Roulet e al., 1987; Steuckardt, 2007) e de incorporação de um discurso alheio (Garcia Negroni, 2016a; Authier-Revuz, 2020), entre os quais se encontra o discurso reportado (Authier-Revuz, 1978; Perrin, 1995).
Esse tipo de fenômeno é, mais especificamente, abordado pelos estudos sobre falácias retóricas por meio da estratégia do espantalho, ou strawman em inglês (Little, Groarke e Tindale, 1989; Johnson e Blair, 1983; Walton, 1995). Essa estratégia tem como objetivo desacreditar e refutar a posição oposta por meio do ataque a uma versão falsa, resumida ou distorcida de um discurso prévio, tornando-o assim insustentável e mais facilmente refutável.
Este artigo tenta mostrar que certos casos muito comuns de desqualificação de um discurso alheio em assembleias políticas se aproximam da estratégia do espantalho sem, no entanto, se enquadrar nessa categoria. Trata-se, portanto, de descrever algumas das particularidades semânticas desses casos, que serão reunidos sob a denominação de ressemantização quadrada. Comecemos observando o funcionamento do espantalho.
Os argumentos analisados pela lógica informal constituem uma fonte de fenômenos que merecem ser inquiridos para uma melhor compreensão das dinâmicas de sentido próprias às interações políticas. O argumento do espantalho aproxima-se de um tipo de ação discursivo-semântica que ocorre frequentemente nas interações que temos estudado (Camus, 2020; 2023) e que modifica aquilo que os participantes podem dizer, com maior ou menor facilidade, em um determinado momento de uma assembleia.
O primeiro exemplo que vamos observar foi estudado por Doury (2021). Trata-se de uma interação política televisionada de 2016 entre N. Sarkozy, então candidato à presidência da França, e M. Lecefel, representante de um sindicato de professores.
N. Sarkozy: Je vous annonce que nous ouvrirons dans chaque département un internat à encadrement pédagogique renforcé où les perturbateurs professionnels seront inscrits d'office.
M. Lecefel: Vous parlez de pédagogie renforcée. Je ne suis ni représentante des forces de l'ordre, ni juge, encore moins surveillante de prison.
N. Sarkozy: Anuncio que abriremos em cada região um internato de controle pedagógico reforçado onde os bagunceiros professionais serão automaticamente inscritos.
M. Lecefel: Você̂ fala de pedagogia reforçada. Eu não sou representante das forças policiais, nem juiz e muito menos carcereiro.
De acordo com Doury (2021), nesse fragmento, M. Lecefel retoma quase literalmente os termos empregados por N. Sarkozy, “pedagogia reforçada”, e apresenta, em seguida, uma posição que atribui a N. Sarkozy por meio da negação polêmica (Ducrot, 1984): sua proposição consistiria no estabelecimento de uma pedagogia carcerária. M. Lecefel se opõe a essa posição, introduzida por ela mesma em seu próprio enunciado. O deslizamento de uma pedagogia reforçada para uma pedagogia carcerária aparece unicamente em seu próprio discurso. Esse discurso apresenta, então, um ponto de vista novo, desqualificado, atribuído a N. Sarkozy, e ao qual se opõe. O mecanismo do espantalho pode ser descrito da seguinte forma (Johnson e Blair, 1983):
1) B atribui a A a posição Q
2) A posição de A não é Q, mas R
3) B critica Q como se fosse a posição realmente defendida por A.
Esse mecanismo é chamado de espantalho porque não se ataca realmente a posição que se pretende enfraquecer, mas uma ilusão. Entendemos que Q, entidade criada pelo locutor B, constitui aqui o espantalho. No exemplo que acabamos de apresentar, o esquema é o seguinte:
i. M. Lecefel atribui a N. Sarkozy a posição [os bagunceiros devem ser submetidos a uma pedagogia carcerária].
ii. A posição de N. Sarkozy não é essa, mas sim [os bagunceiros devem integrar um internato com pedagogia reforçada].
iii. M. Lecefel critica o projeto de pedagogia carcerária como se essa fosse realmente a posição defendida por N. Sarkozy.
Em geral, a estratégia consiste em que a posição introduzida por B seja uma versão exagerada e insustentável do ponto de vista realmente enunciado por A (nem mesmo A poderia defender essa versão). Vejamos agora o que acontece nos dois casos que nos interessam.
O primeiro caso provém de dois fragmentos do Nuit debout, um movimento francês que surgiu em 2016 no contexto de uma mobilização contra o projeto de modificar e, segundo aqueles que se opõem a esse projeto, enfraquecer o Código do Trabalho, ou seja, torná-lo mais liberal. Quase de imediato, o movimento de protesto começou a questionar o modelo econômico vigente, o funcionamento das instituições e a Constituição nacional. Todos os dias, os participantes se reuniam em assembleias nas praças públicas. As intervenções que nos interessam provêm da terceira assembleia, realizada em Paris em 2 de abril de 2016.
O primeiro fragmento que observamos denuncia as práticas de alguns participantes do movimento. Segundo o locutor que chamamos de B, de modo geral, o movimento está perdendo tempo buscando conferir validade normativa às decisões em vez de trocar ideias. Esse tipo de ação freia o alcance do objetivo do Nuit debout, que é, como alguém disse naquele dia, “mudar as coisas” e “criar uma nova sociedade”. O fragmento é o seguinte:
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B: Tout à l'heure je vois des gens, ils sont une cinquantaine à dire : « et ben si on est vingt, qu'on décide que gnagnagni, que gnagnagna, est-ce qu'on passe, est-ce qu'on passe pas ? » [...] Je suis pas là pour critiquer les méthodes. Cependant, je rejoins les propos qui ont déjà été déclarés précédemment : est-ce qu'on est pas là pour parler du fond ? ou pour parler de la forme ? Est-ce qu'on est là pour recréer en permanence un système... qui soit légitime, ou non ? [...] Je suis là pour échanger avec vous. [...] Avant de déjà décider, « est-ce qu'on fait, est-ce qu'on fait pas ? [...] On vote on vote pas ? » On est dans la reproduction. [...] Échangeons s’il vous plaît, avant de déjà normatiser les choses.
B: Faz um tempo, vieram algumas pessoas, cerca de cinquenta, que disseram: “ah, se somos vinte e decidimos que nhenhenhém-nhenhenhém, as pessoas vão aceitar ou não?” [...] Não estou aqui para criticar os métodos. Porém, me uno às ideais que foram declaradas previamente. Estamos aqui para falar do conteúdo do problema ou para falar da forma? Estamos aqui para repetir permanentemente um sistema... sendo ele legitimo ou não? [...] Eu estou aqui para dialogar com vocês. [...] Antes de decidir: fazemos ou não fazemos tal coisa? [...] votamos ou não votamos? Estamos reproduzindo sempre o mesmo. [...] Vamos, por favor, falar antes de normatizar as coisas.
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B critica a maneira de atuar da assembleia, que repete o sistema político ao qual os participantes do Nuit debout se opõem. O locutor faz alusão a um dizer prévio, começando pela restituição de discursos ouvidos antes, para, em seguida, caricaturá-los: “algumas pessoas [...] disseram... que nhenhenhém-nhenhenhém”. Por fim, aponta o ponto ao qual se opõe, por meio de uma denúncia: “estamos sempre reproduzindo a mesma coisa”. Esse fragmento poderia, à primeira vista, considerando-se que ele se opõe a uma posição prévia deformada, mobilizar a estratégia do espantalho. No entanto, ao retomarmos o esquema do procedimento retórico, um problema surge imediatamente em relação à primeira etapa:
1) B atribui a A a posição Q
Pode-se interpretar que a intervenção de B critica o uso do voto ou da tomada de decisões, quando a assembleia deveria ser, segundo ela, um momento de discussão. Portanto, poderíamos considerar que a posição Q é aqui temos que encontrar uma maneira de tomar decisões. Mas quem seria, nesse caso, o locutor A? Não há, nesta assembleia, nenhum locutor A preciso que possa ser identificado, pois B não designa ninguém nominalmente, nem especifica em que momento exato essas pessoas tomaram a palavra. Ainda mais, a palavra é tomada, nesse tipo de assembleia, por meio de uma lista que estabelece previamente a ordem dos locutores. Então, entre o momento no qual uma pessoa manifesta o desejo de falar e o momento efetivo de seu turno de fala, pode haver um intervalo mais ou menos longo, e a reação a um ponto específico prévio pode ser postergada por várias outras intervenções, o que torna ainda mais difícil a identificação de um locutor presumido para encarnar a oposição. Restituir a posição prévia Q também é difícil porque B apenas indica que havia previamente uma certa posição a respeito do tema da tomada de decisões com a qual ela não concorda, recorrendo a marcas de discurso relatado, como “algumas pessoas [...] disseram”, que acabam sendo esvaziadas de conteúdo e avaliadas negativamente (Léon, 1988) por meio do “nhenhenhém-nhenhenhém”. Percebe-se que B critica uma posição que parece bastante geral, sem se basear em nenhum discurso específico. O uso da onomatopeia pode também denunciar o caráter repetitivo dos discursos sobre a tomada de decisões. Assim, B ridicularizaria não apenas uma posição, mas, de modo mais geral, um determinado tipo de discurso ou de posicionamento.
A partir da crítica à posição Q (temos que encontrar uma maneira de tomar decisões) feita pelo locutor B, podemos supor que um dos locutores designados A seja um dos participantes anteriores, que tomou a palavra alguns minutos antes de B e tentou incentivar a tomada de decisões por meio de uma votação. O contexto de sua proposta é o seguinte: segundo as leis francesas, para que um ato político no espaço público não seja ilegal, é necessário declará-lo antecipadamente à prefeitura. Como os militantes querem ocupar a praça central de Paris pelo maior tempo possível, A considera que deveriam fazer o mais rápido possível uma declaração pedindo autorização para vários dias:
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A?: Voilà, ça c'est le premier point organisationnel. Y a un deuxième point, - et ça j'aimerais bien qu'on le soumette au vote - c'qui serait quand même pas mal, c'est que pour couvrir cette possibilité de se rassembler tous les soirs et que ce soit bien les gens de l'assemblée générale et pas un petit groupe organisationnel qui décide de la suite du mouvement et bien on aimerait qu'il y ait une prolongation de plusieurs jours.
A?: Esse é o primeiro ponto organizacional. E tem um segundo ponto. E isso eu gostaria que fosse submetido à votação. Seria bom... Para assegurar que cada noite tivesse essa possibilidade de reunião e para que o futuro do movimento não seja decidido por um pequeno grupo organizador, mas pelas pessoas da assembleia geral, gostaria que tivesse uma prolongação de vários dias [da declaração oficial à prefeitura de Paris].
Nesse fragmento, o locutor A propõe uma votação quase imediata sobre a prorrogação oficial da ocupação da praça e também evoca o tema da legitimidade da tomada de decisão. Ele poderia ser considerado o locutor A necessário para identificar uma estratégia do espantalho. No entanto, trata-se de uma hipótese nossa, pois outras intervenções prévias também abordam a questão das decisões ou propõem votações. Não se pode afirmar que B o apontava especificamente. Essa primeira dificuldade gera outras, uma vez que, se não se sabe quem é o locutor A, é também difícil identificar a posição R que B deforma por meio de Q, que é justamente o segundo elemento do esquema da estratégia do espantalho:
2) A posição de A não é Q, mas R.
Não é possível restabelecer o ponto de vista anterior envolvido nesse mecanismo de refutação, nem medir a distância entre Q e R para determinar um hipotético exagero[1]. Estamos, certamente, diante de uma caricatura e da desvalorização de uma posição prévia, mas a estratégia mobilizada não é a do espantalho.
O segundo caso que vamos analisar é uma intervenção de A. Hernández Mancha, porta-voz do partido ultraconservador Alianza Popular, em um programa de televisão espanhol sobre temas de sociedade em 1985. O tema desse dia era o futuro político, econômico e cultural da Andaluzia. Estavam presentes personalidades políticas de partidos opostos e representantes da cultura andaluza. O fragmento a seguir surge no minuto 27’ do programa:
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Mancha: Y yo la verdad, represento al primer partido de Andalucía en la oposición – el primero en el poder, es el poder socialista. Y nadie pensaba que este partido, que dicen que es de los señoritos, el de los ricos, iba a tener quinientos mil votos jornaleros. Eso no lo sabe la mitad de España, que sigue pensando que Andalucía es un polvorín en el que se ocupan las fincas por quitárselas al dueño. ¡No señor! Se ocupan las fincas y se abandonan a las seis horas. Es más un acto de manifestación frente al poder público que una agresión a la propiedad.
Mancha: E eu, na verdade, represento o maior partido da Andaluzia na oposição – o maior no poder é o partido socialista. E ninguém pensava que o meu partido, que dizem que é o partido dos “señoritos”, o partido dos ricos, ia ter 500.000 votos dos boias-frias[1]. Isso a metade da Espanha não sabe. Eles seguem pensando que Andaluzia é um barril de pólvora em que as fazendas são invadidas para ser tiradas dos donos. Não senhores! As fazendas são invadidas, mas são liberadas as 18h. É mais um ato de manifestação frente ao poder público do que uma agressão à propriedade.
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Essa intervenção mostra posições opostas. Primeiro, uma posição que relaciona o partido Alianza Popular unicamente aos eleitores da classe alta, e outra, a de Mancha, que sustenta que o Alianza Popular reúne tanto eleitores da classe alta como eleitores muito mais pobres, representados pelos boias-frias andaluzes; em segundo lugar, e é essa oposição que nos interessa, há uma posição que, de acordo com Mancha, representa “metade da Espanha”, segundo a qual a Andaluzia é perigosa e a propriedade privada está ameaçada, e a posição que ele assume, segundo a qual não há nenhum perigo político e econômico na região. O primeiro segmento é apresentado como se fosse reconstrução de uma posição prévia alheia, ou mais precisamente de um pensamento (metade da Espanha continua pensando), enquanto o segundo segmento restabelece uma posição apresentada como mais sensata. O contraste entre os dois torna a posição alheia extrema e, portanto, insustentável. Deve-se precisar que, nesse programa televisivo, ninguém mencionou, antes dessa intervenção, ocupações de fazendas. Mancha introduz aqui uma posição alheia (A Andaluzia é um barril de pólvora onde propriedades são ocupadas), cuja origem não se encontra nessa interação. Se tentarmos aplicar os critérios da estratégia do espantalho, encontramos novamente algumas dificuldades:
1) B atribui a A a posição Q. Nessa interação, B, que aqui é Mancha, denomina um certo A, que seria “metade da Espanha”.
2) A posição de A não é Q, mas R.
Mas não sabemos, nesse contexto, qual é a posição exata R de A, porque o A designado é muito geral e não interveio nessa interação. Portanto, não podemos saber se há uma diferença ou uma incompatibilidade entre a posição real e a que está sendo apresentada aqui.
3) B critica Q como se fosse a posição realmente defendida por A.
Qual é a posição criticada por Mancha? Uma posição segundo a qual a Andaluzia seria um “barril de pólvora”, ou seja, uma zona perigosa. Sustentar que um lugar é perigoso é sustentar que não se deve ir para lá. Segundo Carel (2011, p. 33), o significado da palavra “perigo” já contém a ideia de que é necessário abrir mão de uma certa atividade justamente por causa desse perigo. É o que explicita o exemplo: o que Pierre queria fazer era perigoso, portanto, ele desistiu de fazer. Segundo o locutor a quem Mancha se opõe, o perigo está relacionado à ocupação de propriedades. Opor-se a uma posição segundo a qual algo perigoso é encorajar a realizar exatamente esse “algo”, como em Não há perigo, pode ir tranquilo. Em um contexto político, um enunciado como “As ocupações de propriedades não são perigosas” não parece dirigido a um oponente. Na mesma intervenção, Mancha parece convidar os empresários a investir: “É necessário industrializar, é necessário fortalecer o setor de serviços, o turismo, ao que Maria Ángeles [Infante] se referia implicitamente. Creio que é aí que está o futuro”. Parece, assim, que essa oposição não visa ridicularizar um oponente, mas sim chamar seus aliados. Essa interpretação nos afasta do esquema do espantalho.
Considerar que o locutor designado pela crítica de Mancha é apenas “a metade da Espanha” é interpretar literalmente seu enunciado. Porém, no contexto em que ele foi pronunciado, dois elementos devem ser levados em conta. Primeiro, nesse programa televisivo, está presente J. M. Sánchez Gordillo, prefeito de Marinaleda e membro do SOC, sindicato que defende os direitos dos boias-frias. Segundo, no momento desse debate, os boias-frias da cidade de Marinaleda estavam ocupando terras[1]. Então, pode-se considerar, por um lado, que Mancha tenta tranquilizar a metade da Espanha, e por outro lado, ataca as ações dos boias-frias que estão ocupando as propriedades. Na verdade, o público (pelo menos uma parte dele) e os outros participantes do programa sabem que ele está se referindo a Sánchez Gordillo e aos membros do SOC. Nesse caso, poderíamos cair na tentação de considerar que o mecanismo do espantalho se restabelece ao se considerar Sánchez Gordillo (ou os militantes do SOC) como o locutor A. Mas nenhum deles poderia defender que “Andaluzia é um barril de pólvora”, e menos ainda que é um barril de pólvora porque as propriedades são ocupadas. Essa posição não pode ser vista como um exagero da real posição deles. Eles poderiam sustentar que é necessário se opor à propriedade privada e reivindicar o direito de ocupar propriedades. Sánchez Gordillo, por exemplo, afirmou em uma intervenção posterior à de Mancha: “Parece que quando a gente diz que há crise e que é necessário abolir a propriedade da terra, estamos falando uma barbaridade ou algo radical. Bem, a propriedade da terra em Israel, que é um país capitalista, é absolutamente pública. Portanto, eu creio que pedir a abolição da propriedade da terra na Andaluzia é fundamental.” Mas sustentar que ocupar terras é uma agressão à propriedade privada transmite, por meio da palavra “agressão” um ataque que não deveria ocorrer. De fato, na imprensa, ocorrem expressões do tipo “a agressão foi reivindicada por”, mas nunca “reivindicamos a agressão de”, porque no primeiro enunciado, quem qualifica a ação como “agressão” é o locutor jornalista e não a pessoa que reivindica a ação[2]. Portanto, não se trata, em nosso fragmento do programa de televisão “La Clave”, de uma versão exagerada de um discurso prévio que poderia ser atribuída a um oponente. Mesmo considerando um locutor A subentendido que corresponda a Sánchez Gordillo[3], o enunciado de Mancha não pode ser analisado como um caso de espantalho, porque ele não ataca uma posição exagerada atribuída a um oponente.
No entanto, para nós, o exemplo do espantalho que apresentamos e os dois exemplos seguintes possuem um funcionamento comum. Porém, o mecanismo que queremos destacar é mais amplo do que a figura do espantalho, pois reúne casos que não poderiam ser assim classificados dessa forma pelas abordagens retóricas. Precisamos, então, descrever as especificidades de nossos casos. Para isso, tentaremos caracterizar alguns de seus aspectos semânticos.
Todos esses exemplos, sejam os que correspondem ao mecanismo do espantalho ou os dois exemplos de debates que apresentamos, mobilizam um mesmo tipo de mecanismo semântico, que se aproxima do que García Negroni (2009) chama de negação metadiscursiva. Nos casos que contêm uma negação desse tipo, realiza-se um certo trabalho sobre uma posição (efetiva ou não) de um oponente.
Observemos o seguinte exemplo, retirado de García Negroni:
A: – O que você acha do Pedro? Você acha que ele será capaz de resolver esse problema?
B: – Não. Apesar do que dizem, Pedro não é inteligente, mas apenas muito esforçado. Ele nunca será capaz de resolver esse tipo de problema.
Nesse exemplo, um dizer prévio que mostra Pedro como uma pessoa inteligente é rejeitado e substituído, por meio do termo “mas”[1], por uma caracterização de Pedro apresentada como mais adequada: “muito esforçado”. Esse enunciado apresenta um caso de negação metadiscursiva, que tem como característica rejeitar um dizer prévio. Essa negação permite uma leitura desqualificadora de um dizer prévio, seja ele efetivo ou não (é possível que ninguém tenha realmente dito que Pedro é inteligente) e permite a instalação de um novo ponto de vista, que é o de seu locutor. Todos os nossos exemplos compartilham pelo menos essas características com a negação metadiscursiva, ainda que não contenham necessariamente uma negação material. Esse critério de identificação nos permitirá uma primeira delimitação de nosso caso. Podemos ver que esse critério se aplica aos nossos exemplos, pois todos podem ser parafraseados por negações metadiscursivas sem que seu sentido seja significativamente alterado. Pode-se, portanto, aplicar aos nossos exemplos o esquema parafrástico Apesar do que dizem, não é X, mas Y, que aceita todo enunciado que contém uma negação metadiscursiva. Todos os nossos exemplos podem receber paráfrases que compartilham uma mesma estrutura sintática, que manifesta a ativação de um mesmo mecanismo semântico. A intervenção de Mancha poderia ser parafraseada, por exemplo, por: apesar do que diz a metade da Espanha, as ocupações não são uma “agressão à propriedade”, mas apenas “um ato de manifestação contra o poder público”. O exemplo de Nuit debout também pode receber uma paráfrase do mesmo tipo: apesar do que algumas pessoas dissem, o que estamos fazendo aqui não é nos organizar, mas normatizar as coisas. Mais interessante é que também o exemplo que apresentava um caso de espantalho pode receber esse mesmo tipo de paráfrase, revelando assim, como ponto comum com nossos exemplos, um mecanismo semântico similar: apesar do que você diz, o seu projeto não se baseia em uma pedagogia reforçada, mas em uma pedagogia carcerária.
No entanto, essas primeiras características não são nada mais do que um critério de identificação dos nossos casos, e não são suficientes para estudar o tipo de mecanismo que está em jogo. O que propomos é que, para descrever esses mecanismos, é necessário evidenciar a importância de não considerar apenas o trabalho de desqualificação realizado por esse tipo de discurso no próprio enunciado, mas também entender o que se transforma na assembleia, ou seja, o que se pode dizer na continuidade da assembleia que os contém. Deve-se ir um pouco mais longe em sua descrição semântica.
No fragmento das assembleias do Nuit debout, como vimos, é difícil saber se a intervenção de B faz referência à intervenção de A, se faz referência a outros discursos anteriores ou se faz referência tanto à intervenção de A como também a outras que ocorreram previamente e que seriam do mesmo tipo. De fato, há outras intervenções nessa assembleia que evocam a necessidade de se organizar e submeter as propostas à votação. Mas, seja qual for a intenção real de B, o que é certo é que há um antes e um depois de sua intervenção. Independentemente da intenção de B, seja ela atacar explicitamente o discurso de A ou seja ela atacar outro participante da assembleia, o que vemos é que algo mudou na assembleia a partir de sua intervenção. E essa mudança é notada no fato de que outras intervenções criticam, em seguida, a normatização desse movimento político.
Encontramos, por exemplo, o seguinte:
C: Ce serait pour revenir sur les questions de fond et de la forme, euh donc là, c’est très bien, on construit un peu une certaine forme de démocratie, c’est bien, on vote sur plein de choses mais tous les mouvements ils s’effondrent si y a pas d’action, en fait, concrète.
C: Eu gostaria de falar outra vez desse tema do conteúdo e da forma. Estamos construindo um pouco uma certa forma de democracia. Tudo bem. Votamos muitas coisas, mas os movimentos desmoronam se não há ações concretas.
Portanto, para explicar o que está acontecendo em uma interação como as que nos interessam, postularemos que os enunciados atuam sobre um espaço semântico, uma noção que permite a Lescano (2023) dar conta das evoluções dos conflitos sociais[1]. A cada conflito social corresponde uma configuração de natureza semântica, que é modificada pelos enunciados que surgem nessa situação. Graças ao trabalho realizado pelos enunciados, podem surgir novas entidades, assim como novas conexões semânticas. A cada estado da organização interna do espaço semântico corresponde um conjunto de possibilidades de agir, mais ou menos disponíveis no conflito. Assim como em um conflito social, consideramos que todas as intervenções envolvidas em uma mesma assembleia política (por exemplo, a assembleia de Nuit debout de 2 de abril de 2016) atuam sobre o espaço semântico que lhe corresponde, alterando permanentemente sua organização semântica interna. Por exemplo, quando um discurso faz aparecer uma nova posição em um debate, ele instala um novo elemento no espaço semântico e modifica as conexões estabelecidas; quando discursos diferentes defendem uma mesma posição, cada nova aparição desse tipo de discurso também transforma o espaço semântico, pois, por meio desse trabalho discursivo, se reforça uma entidade semântica. Assim, as transformações realizadas pelos discursos nem sempre se traduzem como mudanças radicais na configuração semântica. A partir dessas considerações teóricas sobre o espaço semântico, fica claro que, a partir de tal perspectiva, torna-se difícil continuar mantendo a ideia de que um discurso age sobre outro locutor ou sobre outro enunciado. O que se faz ao produzir um enunciado no contexto de uma interação política ou de um conflito social não é realizar uma ação sobre um interlocutor ou sobre um enunciado prévio, mas modificar a configuração semântica da interação conflitiva. Os enunciados produzidos em uma assembleia ou em um debate atuam sobre uma configuração externa a eles: o espaço semântico do debate ou da assembleia. Esse espaço em contínua transformação é o lugar onde se configura, a partir do trabalho realizado por todos os discursos de uma determinada situação, o que se pode dizer nessa situação, ou seja, no nosso caso, o que se pode dizer, por um lado, na assembleia de Nuit debout e, por outro lado, no debate televisivo. O que é possível dizer em cada situação é condicionado pelo estado do espaço semântico, que não é nada mais do que uma configuração semântica de possibilidades de agir e dizer abertas ou fechadas.
Ao estudar o espaço semântico de uma determinada situação conflitiva, é possível dar conta, do ponto de vista semântico, dos processos dinâmicos que são subjacentes às mudanças visíveis nas intervenções dos participantes. Mas o que são essas possibilidades abertas ou fechadas? Qual é a sua natureza?
As entidades elementares do espaço semântico são o que chamamos de programas (Camus e Lescano, 2021). Definimos esses programas como entidades semânticas pertencentes a um determinado espaço semântico, que autorizam um tipo de ação discursiva e não discursiva — neste artigo, trataremos apenas das ações discursivas. Cada programa é inseparável das relações que mantém com outros programas e do histórico dos efeitos das ações que recebeu (isto é, seus antecedentes dentro do espaço semântico da interação considerada). Isso significa que o programa é indissociável de suas próprias evoluções sucessivas e da facilidade com que pode ser mobilizado, ou seja, do nível de facilidade com que os discursos autorizados por ele podem ser produzidos. De acordo com a Teoria dos Blocos Semânticos (Carel, 2011), todos os enunciados contêm uma estrutura semântica normativa ou transgressiva. Isso significa que todos eles podem receber uma paráfrase que revela uma estrutura do tipo de um movimento que chegue a um ponto B em razão de um ponto A ([B porque A] ou [A portanto B] e também [A permite B]), ou uma estrutura que revela um A apesar de um ponto B ([B ainda que A] ou [A no entanto B]).
Para ilustrar esse ponto teórico central, observemos dois enunciados que provêm dos fragmentos apresentados acima. No enunciado “movimentos desmoronam se não há ações concretas”, a ausência de ações concretas está diretamente relacionada ao desmoronamento dos movimentos, de maneira que se caracteriza um modo de defeito que é um desmoronamento-por-causa-de-falta-de-ação. O enunciado “ninguém pensava que o meu partido, que dizem que é o partido dos ‘señoritos’, o partido dos ricos, ia ter 500.000 votos dos boias-frias” revela uma estrutura chamada transgressiva, pois apresenta o voto dos boias-frias na Alianza Popular como antinatural, ou como inesperado para a maior parte da opinião: trata-se de um voto que ocorreu apesar de um obstáculo. Esse voto é caracterizado como um voto-a-pesar-de-uma-diferença-de-classe.
Na perspectiva do Programa dos Programas (Camus e Lescano, 2021; Coletivo Programa, 2022), consideramos que os programas de um espaço semântico possuem essas duas formas possíveis e também que eles são inseparáveis de tudo o que os vincula ao espaço ao qual pertencem, ou seja, suas relações e a força que possuem, isto é, o grau de facilidade com que se pode produzir discursos a partir deles.
As possibilidades de produzir certos discursos são mais ou menos abertas ou fechadas, dependendo do estado do espaço semântico considerado em um determinado momento. Por exemplo, o enunciado de N. Sarkozy: “Anuncio que abriremos em cada região um internato de controle pedagógico reforçado onde os bagunceiros professionais serão automaticamente inscritos” instala (pelo menos, mas certamente instala vários) o programa normativo [se um aluno é um bagunceiro então será inscrito automaticamente em um internato de controle pedagógico reforçado], que pode ser anotado, para maior clareza, como [bagunceiro → inscrição em internato de controle pedagógico reforçado]. O enunciado de Mancha: “ninguém pensava que o meu partido, que dizem que é o partido dos ‘señoritos’, o partido dos ricos, ia ter 500.000 votos dos boias-frias”, mostra que o voto dos boias-frias a favor do partido ocorreu ainda que se pense que a Alianza Popular seja um partido de ‘señoritos’. Esse enunciado poderia ser parafraseado por: “são boias-frias e, no entanto, votaram no partido que dizem ser o dos ricos”. O enunciado, então, instala um programa transgressivo que anotamos como [boias-frias ⇸ votaram na Alianza Popular].
A partir do mesmo programa, é possível produzir novos discursos, ou seja, a possibilidade de realizar o mesmo tipo de intervenção torna-se mais aberta do que antes. No entanto, não basta instalar o programa para que seja fácil a produção de novos discursos a partir dele. O grau de facilidade com que um discurso pode ser produzido depende de todos os outros elementos que já estão em funcionamento no espaço semântico. Isso significa, portanto, que as mudanças ocorrem, em geral, em níveis sucessivos. Se o espaço semântico contém outros programas ou outros elementos potentes que lhe são refratários, então a possibilidade de produzir esses discursos é mais fraca. Na assembleia do Nuit debout, um programa como [a reforma do Código do Trabalho vai nos prejudicar → nos reunimos contra a reforma] pode ser colocado em produção sem o menor esforço, pois está relacionado a outros programas que acentuam sua força e possui poucas relações com programas que lhe sejam refratários, uma vez que esse programa é o que reúne (principalmente e inicialmente) os participantes. Todas as intervenções discursivas modificam as diferentes propriedades dos programas, que têm um impacto sobre o trabalho discursivo necessário para produzir um discurso audível para os outros participantes de uma assembleia. Isso é o que pode ser observado com o mecanismo da ressemantização quadrada.
Retomemos a descrição de nossos exemplos, começando pela análise do mecanismo presente na assembleia do Nuit debout. Ao considerar os três fragmentos A (a proposta de votação), B (a denúncia da normatização das coisas) e C (o chamado à ação), observa-se que A e B são opostos, e que C parece coerente com B; A anuncia um ponto organizacional e propõe organizar uma votação, enquanto B ridiculariza um tipo de discurso que propõe decidir e rejeita a normatização do movimento. Seu discurso mostra um desacordo com o discurso de A, assim como com todos os discursos prévios e futuros que propõem votação ou tomar decisões. Sua crítica tem um alcance amplo e geral.
De acordo com os conceitos que apresentamos, podemos agora dizer que, nesse contexto, o mecanismo que nos interessa é desencadeado pela intervenção de B, que opera, no espaço semântico, simultaneamente sobre o trabalho realizado previamente pela intervenção de A e sobre a configuração mais geral do espaço semântico. O que acontece nessa interação? Nota-se, no nível dos discursos, um deslocamento da expressão “ponto organizacional” para “normatizar as coisas”. Em que consiste esse deslocamento? Em que consiste o trabalho sobre as entidades semânticas realizado pelo discurso A e, em seguida, pelo discurso B no espaço semântico?
A propõe um “ponto organizacional” que consiste em submeter à votação uma forma de assegurar e manter as assembleias cotidianas para que “o futuro do movimento [...] seja decidido [...] pelas pessoas da assembleia”. Em outras palavras, A propõe votar a favor/contra a manutenção da assembleia, que, segundo ele, é o órgão de decisão geral. Essa intervenção apresenta o ponto organizacional como uma maneira de garantir o futuro do Nuit debout e, portanto, instala no espaço semântico da assembleia um programa que podemos esquematizar como [organização → manutenção do movimento]. A partir desse momento, o espaço semântico contém um programa que permite intervir na assembleia afirmando que a manutenção do movimento depende da sua organização, ou seja, produzindo discursos do mesmo tipo que o de A.
B, ao dizer, por um lado, “estou aqui para dialogar com vocês. [...] Antes de decidir [...]”, evidencia uma certa anormalidade na ordem em que as coisas são feitas. Deveria haver diálogo antes de tomar decisões, e, no entanto, os participantes fazem o contrário. Ele instala no espaço semântico um novo programa, como: [não falar ⇸ decidir]. Além disso, B denuncia uma série de proposições que são menos abertas do que parecem: “fazemos ou não fazemos tal coisa? [...] votamos ou não votamos? [...] Vamos, por favor, falar antes de normatizar”. Está-se, na realidade, normatizando quando os discursos parecem deixar uma margem para escolha. Assim, instala outro programa: [reivindicar fazer proposições ⇸ normatizar as coisas]. Esses programas abrem a possibilidade de produzir novos discursos na assembleia, que apresentam o Nuit debout como falsamente inovador, como um movimento que parece transformar o sistema político, enquanto, na realidade, o reforça, como por exemplo: Tomamos decisões sem falar entre nós ou Dizemos que fazemos proposições, enquanto não fazemos nada além de impor normas ao movimento. Em outras palavras, o trabalho semântico-discursivo realizado por B permite o aparecimento eventual de novos discursos, a partir dos quais o Nuit debout pode ser qualificado como um movimento que “normatiza as coisas”. Agora, a possibilidade de assumir uma posição como a de A parece então enfraquecida. Observemos como funciona esse enfraquecimento. A intervenção de B tem a particularidade de não intervir diretamente sobre o resultado semântico da intervenção de A, ou seja, sobre o programa instalado por A, [organização → manutenção do movimento], como poderia se imaginar, mas instalando novas entidades.
A intervenção de B cria um tipo de conexão em que o primeiro programa e os dois novos entram em uma relação na qual o primeiro programa se encontra mais fraco do que no momento de sua instalação. Portanto, dizer algo do tipo 1 desencadeia a possibilidade de mobilizar um discurso do tipo 2. Para dizer de outra forma, após a intervenção de B, quando o primeiro programa [organização → manutenção do movimento] é novamente colocado em produção, ativa-se mais uma vez, ao mesmo tempo, a possibilidade de reativar os dois outros programas que permitem discursos que desqualificam os pontos organizativos [Não falar ⇸ decidir] e [reivindicar fazer proposições ⇸ normativizar as coisas]. Em nível semântico, o trabalho efetuado por B vincula o programa que havia sido instalado por A aos demais programas que enfraquecem sua própria possibilidade de construir discursos nessa interação. Assim, “propor um ponto organizacional” foi ressemantizado por “normativizar as coisas”. Se se quisesse, na continuação da assembleia, reforçar os discursos permitidos pelo primeiro programa, seria necessário efetuar um trabalho suplementar, pois ele agora ficou preso em uma ressemantização quadrada. Seria necessário tentar entravar a ação de B, por exemplo, tentando desassociar os programas, com discursos como: sair das instituições exige primeiro um ato de organização do movimento, depois poderemos agir de maneira diferente. Por outro lado, vemos com a intervenção C que produzir discursos que criticam as decisões por votação se tornou bastante fácil. C não desenvolve o porquê de estar contra as tomadas de decisão. Sua intervenção já mobiliza novamente toda a configuração, na qual o primeiro programa está vinculado ao programa que o enfraquece.
A ressemantização quadrada consiste em criar, em uma configuração única, uma relação antagônica entre programas opostos, na qual um é enfraquecido e o outro reforçado. Os discursos produzidos a partir dela aparecem como opostos e uma posição aparece desacreditada. Um “quadrado” é desenhado entre as duas expressões discursivas (a que é desqualificada e a nova) e os programas da configuração semântica (o primeiro programa, e os que o prendem na configuração e o enfraquecem).
Como o entendemos, pensamos que o caso do debate televisivo responde ao mesmo mecanismo. O que ocorre aqui é uma oposição entre um ponto de vista externo “ocupam propriedades para tirá-las do dono”, “é uma agressão à propriedade”, e o do locutor Mancha “fazendas são invadidas, mas são liberadas às 18h”, “é mais um ato de manifestação”. A posição alheia é desqualificada por não corresponder ao que realmente ocorre, segundo o que diz Mancha. Esse enunciado realiza, então, um certo trabalho sobre o que pode ser associado à expressão “agressão à propriedade”: sair do terreno ocupado às 18h, segundo Mancha, não pode ser qualificado como agressão à propriedade. Se os boias-frias saem da propriedade às 18h, pode-se apenas, segundo Mancha, qualificar sua ação como “ato de manifestação frente ao poder público”. O elemento subversivo é negado, rejeitado e formulado de outra maneira para restabelecer a posição assumida por Mancha. A desqualificação é feita por meio de um enunciado que apresenta a si mesmo como se restabelecesse uma expressão associada a um certo conteúdo. Em nível semântico, Mancha instala um primeiro programa que autoriza discursos segundo os quais ocupar uma propriedade tem o objetivo de tirá-la do dono. Portanto, um dono é vítima dos boias-frias se eles ocuparem sua propriedade [a propriedade do dono está ocupada → o dono tem que deixar sua propriedade]. Todos esses tipos de discursos autorizados por este primeiro programa podem ser reunidos sob a expressão “agressão à propriedade”.
Mancha mostra a incoerência que reside em uma ocupação de terras que se encerra no final do dia. Apresenta assim as ações políticas dos boias-frias como absurdas: iniciam uma ação para alcançar um certo objetivo, e depois agem contra esse objetivo. Segundo ele quando os boias-frias ocupa uma propriedade, é normalmente porque pensa que o dono não deve mantê-la, e, no entanto, os boias-frias saem da propriedade que não é sua, mostrando assim que reconhecem o título de propriedade do dono. Com essa contradição, tenta ridicularizar essas ações. Instala um segundo programa [ocupar uma propriedade ⇸ respeitar a propriedade] que autoriza todos os discursos que mostram um ato pouco perigoso para a propriedade, e que podem ser reunidos sob a expressão “fazer uma manifestação”. Os dois programas estão conectados em uma única configuração de ressemantização quadrada: o primeiro programa é enfraquecido por ter sido vinculado ao segundo, que é contraditório a ele. A possibilidade de falar em “colocar a propriedade privada em perigo” está menos aberta do que a qualificação de “manifestação”.
Então, se Sánchez Gordillo quisesse falar sobre a ocupação das terras pelos boias-frias, teria que atuar novamente sobre o programa instalado por Mancha, para dar mais força a um programa que permita qualificar positivamente as ações dos trabalhadores rurais. A ressemantização atua sobre dizeres prévios e também tem consequências sobre o futuro da interação. Quando um programa foi objeto de uma ressemantização quadrada, é necessário realizar um trabalho suplementar para restabelecer sua força inicial. Isso ocorre porque esse tipo de procedimento afeta as possibilidades de discursos previamente abertas. Para enfraquecer seus efeitos, são necessários novos discursos que tentem extrair o programa da configuração em que a ressemantização o prendeu.
Para maior clareza, pode-se esquematizar o mecanismo da ressemantização quadrada assim:
Figure 1. Quadro 1. Esquema da ressemantização quadrada. Fonte. Elaboração própria.
Os estudos das falácias se concentram na maneira em que se desacredita um discurso 1 por meio de um discurso 2 (ou seja, a parte superior do esquema). De nossa parte, tentamos concentrar a atenção sobre os mecanismos que têm efeitos sobre o processo de fortalecimento e enfraquecimento que ocorrem na dimensão semântica da interação. Pensamos que assim é possível conceber as interações políticas como um complexo de mecanismos que abrem e fecham possibilidades de discursos.
Os discursos que transformam as palavras do outro para enfraquecer sua posição oposta correspondem a diversos mecanismos discursivos e semânticos. Lembremos das principais propriedades da ressemantização quadrada:
1) O mecanismo do espantalho geralmente contém uma ressemantização quadrada, mas a ressemantização quadrada abrange um mecanismo mais amplo.
2) Os enunciados que contêm uma ressemantização quadrada podem ser identificados e parafraseados por uma negação metadiscursiva.
3) A ressemantização quadrada é um mecanismo semântico que instaura novas relações em um determinado espaço semântico.
4) A ressemantização quadrada é um mecanismo semântico que atua dentro de um espaço semântico de tal forma que enfraquece uma entidade semântica, associando-a a outra que lhe é oposta.
5) A ressemantização quadrada tem como efeito abrir certas possibilidades de discurso em detrimento de outras, que se tornam mais difíceis de mobilizar.
Conflito de Interesse
A autora não tem conflitos de interesse a declarar.
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DOI: https://doi.org/10.25189/2675-4916.2025.V6.N5.ID825.R
EDITOR 1: Tiago de Aguiar Rodrigues
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5120-0908
AFILIAÇÃO: Universidade Federal da Paraíba, Paraíba, Brasil.
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EDITOR 2: Dermeval da Hora Oliveira
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9303-5664
AFILIAÇÃO: Universidade Federal da Paraíba, Paraíba, Brasil.
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EDITOR 3: Jan Edson Rodrigues Leite
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9054-0673
AFILIAÇÃO: Universidade Federal da Paraíba, Paraíba, Brasil.
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EDITOR 4: Alvaro Magalhães Pereira da Silva
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1980-9750
AFILIAÇÃO: Instituto Federal de Sergipe, Sergipe, Brasil.
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EDITOR 5: Erivaldo Pereira do Nascimento
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4595-1550
AFILIAÇÃO: Universidade Federal da Paraíba, Paraíba, Brasil.
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CARTA DE DECISÃO: Com base nos pareceres dos avaliadores, o manuscrito foi aceito para publicação. A decisão favorável se baseia na constatação de que o artigo representa uma grande contribuição para a área, especialmente no que diz respeito à teorização de fenômenos políticos. Além disso, os avaliadores destacaram o mérito acadêmico do trabalho e a estrutura linguística bem elaborada, em conformidade com as exigências de nossa revista. Acreditamos que o artigo tem potencial para gerar um impacto positivo na área temática abordada, enriquecendo o debate e a produção científica.
AVALIADOR 1: Júlio César Machado
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0364-3370
AFILIAÇÃO: Universidade do Estado de Minas Gerais, Minas Gerais, Brasil.
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AVALIADOR 2: Maria Vanice Lacerda de Melo Barbosa
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4149-9173
AFILIAÇÃO: Universidade Federal de Campina Grande, Paraíba, Brasil.
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RODADA 1
AVALIADOR 1
2025-07-14 | 12:30 PM
O artigo traz grande contribuição para a área, sobretudo no que tange à teorização de fenômenos políticos.
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AVALIADOR 2
2025-08-24 | 04:37 PM
O artigo apresenta mérito acadêmico e estrutura linguística bem elaborada. Além disso, os aspectos teórico e metodológico estão em conformidade com as exigências do periódico. Nesse sentido, vislumbra-se impacto positivo para a área temática abordada no artigo.
O artigo apresenta objetivos em conformidade com a metodologia escolhida, bem como com as abordagens desenvolvidas como aporte teórico. Na introdução já podemos observar, antecipadamente, pontos do texto de forma a apresentar o contexto temático do trabalho. Seguindo-se a leitura, na seção da fundamentação teórica, é importante ressaltar que, mesmo de forma resumida, a teoria é apresentada atendendo a necessidade de deixar claro, para o leitor, que o apoio teórico é suficiente e se torna fio condutor para as análises. Assim, as análises dialogam fidedignamente com a teoria de base.